Noel Rosa e Wilson Batista são dois dos mais influentes compositores brasileiros do século XX. Ambos foram pioneiros do samba e contribuíram significativamente para a música popular brasileira. No entanto, os dois se envolveram em um duelo musical que ficou conhecido como uma das maiores polêmicas da história do Samba e da MPB. Conheça abaixo toda a polêmica envolvida no duelo musical de Noel Rosa e Wilson Batista.
O início do duelo
Quando o embate teve inicio em 1933, os dois eram ainda bem jovens. Noel, nascido em 11 de dezembro de 1910, tinha apenas 22 anos. Enquanto Wilson, nascido 3 de julho de 1913, havia recém completado 20 anos. Apesar da pouca idade, Noel já era a esta altura um respeitado compositor, com dezenas de sambas escritos e gravados. Wilson na época não era um nome conhecido, pois vendia letras de samba e muitas vezes nem assinava, tendo algumas delas gravadas sem que ele tivesse crédito.
Em 1933, Wilson Batista compôs a música “Lenço no Pescoço” que enaltecia a figura do malandro e fazia certa apologia à criminalidade. Noel Rosa escreveu posteriormente um samba chamado “Rapaz Folgado” que respondia diretamente à letra de “Lenço no Pescoço”. Iniciando assim esta disputa de sambas que hoje faz parte do folclore musical brasileiro.
Meu chapéu do lado / Tamanco arrastando / Lenço no pescoço / Navalha no bolso / Eu passo gingando / Provoco e desafio / Eu tenho orgulho / Em ser tão vadio / Sei que eles falam / Deste meu proceder / Eu vejo quem trabalha / Andar no miserê / Eu sou vadio / Porque tive inclinação / Eu me lembro, era criança / Tirava samba-canção / Comigo não / Eu quero ver quem tem razão / E eles tocam / E você canta / E eu não dou
letra da música “Lenço no Pescoço” de Wilson Batista
Deixa de arrastar o teu tamanco / Pois tamanco nunca foi sandália / E tira do pescoço o lenço branco / Compra sapato e gravata / Joga fora esta navalha que te atrapalha / Com chapéu do lado deste rata / Da polícia quero que escapes / Fazendo um samba-canção / Já te dei papel e lápis / Arranja um amor e um violão / Malandro é palavra derrotista / Que só serve pra tirar / Todo o valor do sambista / Proponho ao povo civilizado / Não te chamar de malandro / E sim de rapaz folgado
letra do samba “Rapaz Folgado” de Noel Rosa
Muitos dizem que o motivo de Noel ter respondido teria sido por causa de seu amigo Orestes Barbosa que chegou a escrever uma coluna de jornal criticando “Lenço no Pescoço”. Mas outros dizem que o real motivo foi uma disputa pelo coração de uma moça, disputa essa em que o malandro Wilson Batista levou a melhor. No mesmo ano que se iniciou a rixa, Noel escreveu a musica “Amor de Parceria”, cuja a letra parece corroborar com esta versão (embora não haja confirmação de que ela se trate deste caso). Na letra, direcionada para alguma moça, ele diz: “(…) Você provoca briga entre rivais! Para depois ver nos jornais seu nome, seu clichê! (…)“. O que nos leva a crer se tratar da tal namorada roubada por Wilson.
Envolvendo o bairrismo
Mas voltemos à polêmica do duelo musical. Wilson, que na época era pouco conhecido, viu na “resposta” de Noel, que já era um compositor consagrado, a oportunidade de fama. Então juntou o útil ao agradável, ou no caso a oportunidade com a gaiatice, e escreveu “Mocinho da Vila” onde faz críticas ao bairro de Vila Isabel tão querido por Noel. Além das criticas ao bairro, o samba inclui referências à músicas de Noel como “Meu barracão” e também algumas indiretas.
Você que é mocinho da Vila / Fala muito em violão, barracão e outros fricotes mais / Se não quiser perder o nome / Cuide do seu microfone e deixe / Quem é malandro em paz / Injusto é seu comentário / Falar de malandro quem é otário / Mas malandro não se faz / Eu de lenço no pescoço / Desacato e também tenho o meu cartaz
letra de “Mocinho da Vila” de Wilson Batista
A principio Noel ignorou a última resposta de Wilson e seguiu fazendo seus sambas. Porém um dia, numa apresentação no rádio, solicitaram que Noel apresentasse algo inédito. Ele então pegou sua já famosa música “Feitiço da Vila” e acrescentou novos versos que respondiam à “Mocinho da Vila” de Wilson.
Quem nasce lá na Vila / Nem sequer vacila / Ao abraçar o samba / Que faz dançar os galhos / Do arvoredo e faz a Lua / Nascer mais cedo / Lá, em Vila Isabel / Quem é bacharel / Não tem medo de bamba / São Paulo dá café / Minas dá leite / E a Vila Isabel dá samba / A vila tem um feitiço sem farofa / Sem vela e sem vintém / Que nos faz bem / Tendo nome de princesa / Transformou o samba / Num feitiço decente / Que prende a gente / O Sol da Vila é triste / Samba não assiste / Porque a gente implora / Sol, pelo amor de Deus / Não vem agora / Que as morenas / Vão logo embora / Eu sei por onde passo / Sei tudo o que faço / Paixão não me aniquila / Mas, tenho que dizer / Modéstia à parte / Meus senhores / Eu sou da Vila!
“Quem nasce pra sambar / Chora pra mamar / Em ritmo de samba. / Eu já saí de casa olhando a lua / E até hoje estou na rua. / A zona mais tranquila / É a nossa Vila / O berço dos folgados / Não há um cadeado no portão / Porque na Vila não há ladrão.”
letra original e versos adicionais de “Feitiço da Vila” de Noel Rosa
Em seguida, Wilson não perdeu tempo para lançar sua nova resposta, que veio através do samba “Conversa fiada”.
É conversa fiada dizerem que o samba na Vila tem feitiço / Eu fui ver para crer e não vi nada disso / A Vila é tranqüila porém eu vos digo: cuidado! / Antes de irem dormir dêm duas voltas no cadeado / Eu fui à Vila ver o arvoredo se mexer e conhecer o berço dos folgados / A lua essa noite demorou tanto / Assassinaram o samba / Veio daí o meu pranto
letra de “Conversa fiada” de Wilson Batista
Noel então cria sua contraparte no que viria a ser um de seus mais famosos sambas, o belíssimo “palpite infeliz”.
Quem é você que não sabe o que diz? / Meu Deus do Céu, que palpite infeliz! / Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira, Oswaldo Cruz e Matriz / Que sempre souberam muito bem / Que a Vila Não quer abafar ninguém, / Só quer mostrar que faz samba também / Fazer poema lá na Vila é um brinquedo / Ao som do samba dança até o arvoredo / Eu já chamei você pra ver / Você não viu porque não quis / Quem é você que não sabe o que diz? / A Vila é uma cidade independente / Que tira samba mas não quer tirar patente / Pra que ligar a quem não sabe / Aonde tem o seu nariz? / Quem é você que não sabe o que diz?
letra do famoso samba “palpite infeliz” de Noel Rosa
Depois disso, Wilson Batista resolveu pegar pesado e escreveu a música “Frankenstein da Vila”, onde zombava da aparência de Noel que tinha uma má formação no queixo resultante de uma fratura no parto.
Boa impressão nunca se tem / Quando se encontra um certo alguém / Que até parece um Frankenstein / Mas como diz o rifão: por uma cara feia perde-se um bom coração / Entre os feios és o primeiro da fila / Todos reconhecem lá na Vila / Essa indireta é contigo / E depois não vá dizer / Que eu não sei o que digo / Sou teu amigo
letra da música “Frankenstein da Vila” de Wilson Batista
Finalizado a polêmica
O fim desse duelo musical se deu em 1935, num dia em que Wilson Batista viu Noel Rosa em um bar da lapa no Rio de Janeiro. Ele o chamou dizendo algo como “venha ver o samba que compus para nossa disputa”. O Samba em questão era “Terra de cego”.
Perca esta mania de bamba / Todos sabem qual é / O teu diploma no samba. / És o abafa da Vila, eu bem sei, / Mas na terra de cego / Quem tem um olho é rei. / Pra não terminar a discussão / Não deves apelar / Para um barulho na mão. / Em versos podes bem desabafar / Pois não fica bonito / Um bacharel brigar.
letra de “Terra de cego” de Wilson Batista
Após ver o samba, Noel sugeriu uma nova letra mudando o foco da musica que passava a criticar uma vedete chamada Ceci que havia tido caso com ambos. Nasceu ai o samba “Deixa de ser convencida”, única musica com parceria dos dois.
Deixa de ser convencida / Todos sabem qual é / Teu velho modo de vida / És uma perfeita artista, eu bem sei / Também fui do trapézio / Até salto mortal / No arame eu já dei / E no picadeiro desta vida / Serei o domador / Serás a fera abatida / Conheço muito bem acrobacia / Por isso não faço fé / Em amor, em amor de parceria
letra de “Deixa de ser convencida” de Noel Rosa
Esta canção faz inclusive uma referência à letra do samba “Amor de Parceria” citado anteriormente. Deixando novamente a idéia de que toda esta polêmica se deu por causa dos amores disputados. E até certa insinuação de que Ceci seria a mesma moça disputada lá no começo da rixa.
Noel Rosa faleceu, vítima de uma tuberculose, 2 anos após o término deste embate musical. Morreu jovem, com 26 anos, já com uma carreira enorme e mais de 250 sambas. Já Wilson Batista, viveu até 1968 quando faleceu aos 55 anos. Desde a morte de Noel, Wilson sempre o elogiava em entrevistas e fez diversos sambas homenageando o velho amigo. Entre eles “Terra Boa” onde diz: “Terra de Santos Dumont, Carlos Gomes, Ruy Barbosa, Grande Duque de Caxias, Castro Alves, Noel Rosa…“. Que enaltece Noel o colocando entre outros grandes nomes.
O duelo ganhou seu próprio disco
Em 1956, já depois da morte de Noel, a gravadora Odeon lançou um disco chamado “Polêmica” trazendo as principais canções envolvidas em toda essa história.
O IMS Rio (Instituto Moreira Salles) realizou em 2012 o show “Polêmica Noel Rosa x Wilson Batista, por Monarco e Nelson Sargento”, no qual os sambistas interpretam as nove músicas do LP de 1956. Veja detalhes aqui.
Gostou desta história e se interessa por música, veja nosso post sobre a inspiração para a música “Eduardo e Monica” da banda “Legião Urbana”.